quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Um nome

Hoje, um dia qualquer, uma quarta-feira de manhã.
Saí da aula, abri a caixa de e-mails e lá estava uma mensagem com o título "Aviso de devolução". Era da biblioteca.
Passei rapidamente os olhos na primeira linha "Prezado(a) Maíra Mifano Sasso, (...)" e parei por aí.
Sim, era para mim. Maíra Mifano Sasso sou eu, eu sei, mas nessa manhã de quarta feira esse nome me pareceu um tanto vazio, alheio a mim. Era como se eu visse escrito um nome qualquer de uma pessoa estranha. Maíra, nome esquisito, Mifano Sasso, que raios de sobrenome é esse?
Acostumei desde sempre, desde que me conheço por gente, a ouvir esse som da pronuncia de Maíra Mifano Sasso. Não me lembro quando foi a primeira vez que ouvi. Nem quando foi a primeira vez que o vi escrito. Nem quando foi a primeira vez que desenhei as letras desse nome.
Sempre me pareceu completamente normal que o "a" viesse logo após o "M" maiúsculo e seguido de um "i" com acento agudo e logo depois do "i" e antes do "a" final, um"r", somente um, não dois, se fossem dois o som seria outro, "Maírra", como costuma dizer a minha avó.
Acostumei-me também a ouvir algum desconhecido chamando "Maira" ou "Maiara" e saber que é comigo. Associei à minha personalidade cada um desses nomes. Quando na fila do médico a enfermeira chama "Maiara Mifano", ou "Maira Missano", aprendi a simplesmente dizer "sou eu", mesmo sabendo que não sou eu. Eu não me chamo Maira, nem Maiara, nem Maria, nem Mayra, mas aprendi a dizer que sou eu, para que não se prolongue o assunto.
Então veio "Maöra". Um novo alguém. "Maöra" tornou-se "Maôra", que tornou-se "Maô", que se tornou eu.
Se alguém diz Maô ou qualquer de suas variações (Maôzinha, Maôzão, Maôzets, Maôr, Mao) sei que se referem a mim. Não há dúvidas nem discussões. Não há crises de identidade.
E entre tantos eus de tantos nomes acostumei-me a responder por qualquer coisa que me chamem, sem estranhar.
Até de vez em quando acontece de alguém ao meu lado, ao telefone, dizer "Alô" e eu responder "quê?".

Mas retornemos ao e-mail dessa manhã. Maíra Mifano Sasso. Foi o nome que veio escrito.
Esse nome carrega tantas coisas. Mifano, a família judia que veio do Egito, fugida de Nasser, a família que se tornou rica devido a um antepassado que começou vendendo gilette no farol, foi crescendo, montou uma barraquinha, uma vendinha, uma lojinha e em pouco tempo tinha a maior loja de departamentos de todo o Cairo.
E entretanto, de nada adiantou tanto esforço, pois no fim da vida foi expulso de sua terra com a roupa do corpo. Obrigado a deixar para trás toda a riqueza e os bens acumulados. Foi mandado em um navio cheio de foragidos para a França e enfim para o Brasil. Sem falar uma palavra de português. Sem saber sequer onde estava, foi morar na boca do lixo, perto da rodoviária antiga de São Paulo. Ele já velhinho, a esposa, seu filho, sua nora, os pais da nora, também velhos, suas duas netas pequenas e uma que estava por nascer e que veio, tempos depois, se tornar minha mãe.
Tantas outras histórias mais antigas e mais novas que carregam meu sobrenome materno. Tanta coisa em seis letras.
E as outras cinco: Sasso. Erro de escrita. Seria Chiacchio.
Sasso é uma pedrinha. Pedra que dá pegar na mão, segundo um amigo que morou na Itália. Chiacchio eu não sei o significa.
Há tantas outras histórias nesse sobrenome. Um antigo galã das radio-novelas, meu avô. Uma linda história de amor que o envolve e que de certa forma me trouxe a vida. Mas essa fica para uma outra hora.

Bem, reflexões vazias, um pouco bestas, a respeito de meu nome.
Tudo isso para tentar dizer quem eu sou. Eu não sou isso. Mas isso está em mim, em meu nome, que meus pais escolheram e que carrego por toda a existência.
Existir também é carregar os antepassados nas costas. Há sempre quem pergunte "Você é filha de fulano? É neta de ciclano?". Ah, esses nomes. O que é um nome? Se Romeu e Julieta tivessem podido se livrar de seus nomes não teriam vivido a mais famosa história de amor de toda a literatura...

4 comentários:

Anônimo disse...

Maô, querida, belo post! :)
Posso copiar a história (dando so créditos e linkando aqui lógico) e publicála no "A História das Mulheres"(www.ahistoriadasmulheres.blogspot.com)?

Maô disse...

Oi Marília,
Ah, que bom que vc gostou! Fico feliz em saber.
Pode copiar sim, sem problemas.

Beijão

camila colombo. disse...

Maíra!

Que coisa linda, mulher!

Quantas são, e tão habitadas!

Kisses!

Unknown disse...

Belíssima história! Sasso em italiano é o mesmo que "seixo" em português. E devemos lembrar que muitos judeus italianos descendem de judeus hispano-portugueses. Outra possibilidade é Sasso ser apenas uma corruptela da palavra hebraica "sasson": que significa alegria!