Hoje, um dia qualquer, uma quarta-feira de manhã.
Saí da aula, abri a caixa de e-mails e lá estava uma mensagem com o título "Aviso de devolução". Era da biblioteca.
Passei rapidamente os olhos na primeira linha "Prezado(a) Maíra Mifano Sasso, (...)" e parei por aí.
Sim, era para mim. Maíra Mifano Sasso sou eu, eu sei, mas nessa manhã de quarta feira esse nome me pareceu um tanto vazio, alheio a mim. Era como se eu visse escrito um nome qualquer de uma pessoa estranha. Maíra, nome esquisito, Mifano Sasso, que raios de sobrenome é esse?
Acostumei desde sempre, desde que me conheço por gente, a ouvir esse som da pronuncia de Maíra Mifano Sasso. Não me lembro quando foi a primeira vez que ouvi. Nem quando foi a primeira vez que o vi escrito. Nem quando foi a primeira vez que desenhei as letras desse nome.
Sempre me pareceu completamente normal que o "a" viesse logo após o "M" maiúsculo e seguido de um "i" com acento agudo e logo depois do "i" e antes do "a" final, um"r", somente um, não dois, se fossem dois o som seria outro, "Maírra", como costuma dizer a minha avó.
Acostumei-me também a ouvir algum desconhecido chamando "Maira" ou "Maiara" e saber que é comigo. Associei à minha personalidade cada um desses nomes. Quando na fila do médico a enfermeira chama "Maiara Mifano", ou "Maira Missano", aprendi a simplesmente dizer "sou eu", mesmo sabendo que não sou eu. Eu não me chamo Maira, nem Maiara, nem Maria, nem Mayra, mas aprendi a dizer que sou eu, para que não se prolongue o assunto.
Então veio "Maöra". Um novo alguém. "Maöra" tornou-se "Maôra", que tornou-se "Maô", que se tornou eu.
Se alguém diz Maô ou qualquer de suas variações (Maôzinha, Maôzão, Maôzets, Maôr, Mao) sei que se referem a mim. Não há dúvidas nem discussões. Não há crises de identidade.
E entre tantos eus de tantos nomes acostumei-me a responder por qualquer coisa que me chamem, sem estranhar.
Até de vez em quando acontece de alguém ao meu lado, ao telefone, dizer "Alô" e eu responder "quê?".
Mas retornemos ao e-mail dessa manhã. Maíra Mifano Sasso. Foi o nome que veio escrito.
Esse nome carrega tantas coisas. Mifano, a família judia que veio do Egito, fugida de Nasser, a família que se tornou rica devido a um antepassado que começou vendendo gilette no farol, foi crescendo, montou uma barraquinha, uma vendinha, uma lojinha e em pouco tempo tinha a maior loja de departamentos de todo o Cairo.
E entretanto, de nada adiantou tanto esforço, pois no fim da vida foi expulso de sua terra com a roupa do corpo. Obrigado a deixar para trás toda a riqueza e os bens acumulados. Foi mandado em um navio cheio de foragidos para a França e enfim para o Brasil. Sem falar uma palavra de português. Sem saber sequer onde estava, foi morar na boca do lixo, perto da rodoviária antiga de São Paulo. Ele já velhinho, a esposa, seu filho, sua nora, os pais da nora, também velhos, suas duas netas pequenas e uma que estava por nascer e que veio, tempos depois, se tornar minha mãe.
Tantas outras histórias mais antigas e mais novas que carregam meu sobrenome materno. Tanta coisa em seis letras.
E as outras cinco: Sasso. Erro de escrita. Seria Chiacchio.
Sasso é uma pedrinha. Pedra que dá pegar na mão, segundo um amigo que morou na Itália. Chiacchio eu não sei o significa.
Há tantas outras histórias nesse sobrenome. Um antigo galã das radio-novelas, meu avô. Uma linda história de amor que o envolve e que de certa forma me trouxe a vida. Mas essa fica para uma outra hora.
Bem, reflexões vazias, um pouco bestas, a respeito de meu nome.
Tudo isso para tentar dizer quem eu sou. Eu não sou isso. Mas isso está em mim, em meu nome, que meus pais escolheram e que carrego por toda a existência.
Existir também é carregar os antepassados nas costas. Há sempre quem pergunte "Você é filha de fulano? É neta de ciclano?". Ah, esses nomes. O que é um nome? Se Romeu e Julieta tivessem podido se livrar de seus nomes não teriam vivido a mais famosa história de amor de toda a literatura...
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
terça-feira, 6 de outubro de 2009
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
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